No dia 20 de outubro de 1991, nostalgia à parte, a Fórmula 1 vivia um momento parecido com o atual em um particular aspecto: o domínio de um piloto sobre os demais. Se hoje se fala sobre Vettel, naquela época Senna dominava todas as manchetes. O assunto era um só: qual seria o limite daquele brasileiro obstinado pela vitória, perfeccionista, arrojado, que conquistava o seu terceiro campeonato mundial nos últimos quatro anos?
Infelizmente, aquela seria a última temporada em que Ayrton Senna levantava o troféu máximo da categoria. Nos anos seguintes, foi vencido pela fora de série Williams, de Mansell (1992) e Prost (1993). Quando finalmente se juntou ao time de Frank, acabou derrotado pela Tamburello.
Claro que os mais saudosistas dirão que aquele outubro não tem absolutamente nada a ver com este. Aquela foi uma temporada de altos e baixos para todos os pilotos. A Williams foi o melhor carro, mas por vezes a McLaren conseguiu encontrar desempenho para brigar pelas vitórias, graças às constantes atualizações do MP4/6. O FW14 da Williams era o embrião dos modelos imbatíveis dos anos seguintes. O que definiu o embate foi justamente a mítica performance de Senna, que em sua 8ª temporada na F1 aliava o seu avassalador talento à maturidade para tomar as escolhas certas nos momentos decisivos.
Senna aproveitou as chances que teve. Foi perfeito nas primeiras corridas, vencendo quatro em sequência: EUA, Brasil, San Marino e Mônaco. Com 40 pontos, via Mansell de longe, com apenas 6. Aos poucos, a Williams encontrou o caminho das vitórias e emparelhou o campeonato. Mansell venceu na França, Grã-Bretanha e Alemanha. Senna deu o troco na Hungria e Bélgica. O “Leão” voltou a subir no lugar mais alto do pódio na Itália e Espanha. Os dois chegavam ao GP do Japão, o penúltimo da temporada, como os únicos candidatos ao título.
Senna liderava a classificação com 85 pontos, contra 69 de Mansell. Para ainda sonhar com o título no GP da Austrália, o inglês era obrigado a vencer e torcer para que Senna ficasse em 3º ou abaixo disso. Caso ficasse em 2º, o brasileiro não poderia pontuar. A taça estava nas mãos de Senna, e pela terceira vez seria conquistada no Japão, palco da torcida mais fanática por Ayrton depois do Brasil.
A corrida – motor Honda e McLaren perfeitos e Mansell sem chances
Naquela madrugada de sábado para domingo, o GP de Suzuka parou o país. Apresentado pelo eterno Léo Batista, a Globo exibiu um programa para “esquentar” a transmissão. Direto do Japão, Reginaldo Leme entrevistou diversos pilotos e personalidades sobre quem venceria o campeonato. Piquet, Patrese, Prost, Gugelmim, entre outros, todos foram unânimes em apostar em Senna. Curiosa é a opinião de um piloto franzino, com voz de menino, sobre o que esperava sobre a disputa:
“Eu não espero nada, espero que seja uma boa corrida. Espero que seja uma corrida limpa, se isso acontecer, a decisão vai ficar para a Austrália”, disse o garoto alemão, chamado Michael Schumacher. Já ouviu falar? Ele ainda completa: “Eu gostaria de conseguir hoje a primeira vitória na Fórmula 1, já que a Benetton venceu aqui nos dois últimos anos”. Se tivesse uma bola de cristal, ele não teria pressa em vencer na categoria.
No grid, Berger (companheiro de Senna) foi o pole, seguido pelo brasileiro, Mansell, Prost (correndo pela Ferrari) e Patrese (na Williams). A estratégia da McLaren, traçada por Ron Dennis, era aproveitar as posições de largada para bloquear completamente qualquer investida de Mansell. A tática deu certo. Na luz verde, Senna, no lado sujo da pista, pulou para o meio, enquanto Berger fechou a passagem do seu lado esquerdo. A única porta aberta era o lado direito da pista. Mansell manteve a calma e apenas defendeu o seu terceiro lugar.
A única vantagem obtida pela Williams na largada foi a ultrapassagem de Patrese sobre Prost, o que garantiria que Mansell seria blindado atrás pelo companheiro de equipe e não sofreria pressão de ninguém. Nas primeiras cenas, já era possível perceber qual era o pulo do gato da McLaren: Berger voava na frente, fazendo tempo de classificação, enquanto Senna segurava Mansell.
O brasileiro conseguiu adotar essa estratégia graças ao bom desempenho do motor Honda que foi preparado para aquela corrida. A McLaren estava com uma velocidade final em reta muito grande. Senna fazia as curvas de baixa de modo muito lento e depois sabia que não seria alcançado pelas Williams na reta, que tinham uma saída de curva pior. Enquanto isso, Berger virava em média 1 segundo mais rápido que a dupla que disputava o título.
A cada volta, a pressão sobre Mansell aumentava. Ele sabia que precisava vencer a corrida e Berger tinha pista livre. Em pouco tempo, o austríaco poderia abrir uma diferença impossível de ser alcançada, aniquilando a possibilidade de título de Mansell. Foi aí que veio a cena mais emblemática do tri: na 10ª volta, o inglês parte para o ataque, entra engatado em Senna na cuva 1. Ao pisar no freio, o carro balança, as rodas esquerdas sobem na zebra externa, a traseira vai embora e o “Leão” levanta poeira na caixa de brita.
O cascalho denso, usado na época em trechos de desaceleração após longas retas, tornou impossível a volta para a pista. Estava tudo terminado. Senna poderia até abandonar a prova que seria campeão. Mansell tirou o volante, soltou o cinto, saiu do carro e suspirou fundo. Ficou imóvel por breves segundos, amargando a dor da derrota. Após retirar o capacete, atravessou a pista, para a parte interna do circuito, mancando na perna esquerda. Nas imagens dos boxes, Frank Williams olhava fixamente para a tela da TV, sem mover um único músculo da face.
A transmissão da Globo já botou para rodar o áudio de “Brasil-il-il-il” e Galvão Bueno emendou o seu último discurso inflamado sobre um brasileiro campeão de Fórmula 1. Neste momento, surge a primeira profecia do narrador. Zombando da falta de paciência do inglês em forçar o ritmo e da sua “sina de vice”, ele disse: “aí, Mansell. Fica para o próximo ano, quem sabe”. E ficou. Mansell derrubou todos em 1992 e foi campeão.
Sobre o acidente que decidiu o campeonato de 1991, disse que teve problemas no freio. Segundo ele, houve uma falha nos freios durante o warm-up (antigo treino livre que acontecia no domingo, antes da prova). “Entrei com tudo porque o carro estava muito rápido e muito estável ali. Quando pisei nos freios, fui pego de surpresa. A velocidade não se reduziu. Tentei fazer a curva e saí da pista”, lamentou Mansell.
Deixar passar ou não deixar? Eis a questão…
Bastou o campeonato estar resolvido para Senna apertar o ritmo para cima de Berger. A corrida, agora, se resumia à caça pela vitória. O parque de diversões estava aberto. Mas a McLaren, por outro lado, ainda estava muito interessada na dobradinha que se desenhava. A equipe estava um ponto atrás da Williams na classificação de Construtores. Uma primeira e segunda colocações, mesmo com um terceiro de Patrese, fazia o time abrir 11 pontos de vantagem sobre o rival.
A diferença entre as duas McLaren, que até o acidente de Mansell subia 1 segundo, agora diminuía no mesmo ritmo. Na 17ª volta, apenas 2,3 segundos separavam os dois. Na passagem seguinte, Senna pula na frente sem nenhuma dificuldade sobre o companheiro de equipe. É provável que Berger tenha desgastado muito os pneus durante as primeiras voltas em que fez tempos de classificação. Logo em seguida, o austríaco fez o seu pit-stop. Senna acompanhou e também colocou novos compostos algumas voltas depois.
Aí veio a polêmica. A equipe havia combinado antes da prova que quem liderasse no início, teria o direito de vencer, em caso de dobradinha. Imposição pra lá de justa, já que Berger havia forçado muito o carro no início da corrida apenas em benefício de Senna, para pressionar Mansell. Como a tática deu certo, nada mais justo do que os pilotos cumprirem o que foi acordado, certo?
Pois para Senna, pilotando com sobras na frente de Berger e com a vitória encaminhada, não era uma situação tão simples assim. Senna disse que perguntou pelo rádio, se deveria ceder a posição para o companheiro, mas que não escutou direito a resposta. Aproveitou um trecho de baixa rotação do motor para perguntar novamente e recebeu o apelo de Ron Dennis para fazer a troca de posições.
Na cabeça do chefe de equipe, aquele seria o modo mais seguro de fazer os pilotos terminarem a prova, com dobradinha da McLaren, sem disputas desnecessárias na pista. Tanto Senna quando Berger voavam na pista. Naquela época, as quebras eram frequentes. E os retardatários não abriam tão fácil assim para os líderes. Era preciso correr alguns riscos ao passar pelos corredores que estavam muitas vezes até 2 ou mais voltas atrás dos líderes.
Senna fez questão de acelerar até a penúltima volta. Antes da última curva, diminuiu a aceleração de maneira severa. A diferença, que era de cerca de 6 segundos entre os dois, desapareceu. E Senna passou de mansinho na reta, enquanto Berger recebia a bandeirada. Muitos disseram que Senna fez isso para que os dois aparecessem na foto final, mas qualquer um que conhece o instinto vencedor de Senna, sabe que o brasileiro não aceitava perder. Senna fez isso, sim, para provar que ele foi o “vencedor moral” daquela prova. Para deixar claro que se tratava de um presente para Berger, mas que ele seguia sendo o mais rápido.
Numa cena que talvez nunca mais seja reproduzida novamente, já que a FIA proibiu que pilotos usem objetos em comemorações – Senna pegou uma pequena bandeira do Brasil de um fiscal e desfilou pela pista de Suzuka, enquanto os japoneses comemoravam feito título de Copa do Mundo nas arquibancadas. Quando para o carro, o primeiro abraço é em Berger. O segundo, em Ron Dennis. Surge Mansell, o vilão, o rival, e ergue o punho do brasileiro, numa bonita demonstração de esportividade.
No pódio, um Berger sorridente, mas um pouco sem jeito com o “presente” recebido. Patrese, coadjuvante no campeonato e na corrida, era o ator secundário daquele pódio também. A festa foi toda de Senna. Ele estourou o champanhe e derramou inteiro sobre a cabeça, produzindo outra imagem clássica daquele 10 de outubro.
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